Fronteiras e Poder: Segurança ou Influência?
Origem do ICE:
Na sequência do pânico gerado pelo atentado de 11 de setembro, acompanhado de uma vasta quantidade de novas políticas, económicas, militares e sociais, bem como reorganizações a nível de segurança externa e interna, surge, no dia 1 de março de 2003, o ICE (U.S. Immigration and Customs Enforcement), dentro do departamento Homeland Security.
No entanto, as suas operações e imposições de medidas datam de 20 anos antes da sua formação oficial. No ano de 1787, quando da publicação dos The Federalist Papers, Alexander Hamilton já iniciara a sua luta em função da imposição de tarifas, enquanto principal contributo para a prosperidade e sustentabilidade da nação americana, o que, por consequência, faz surgir o The Tariff Act of 1789. Antes da conclusão desse mesmo ano, estabelece-se que o U.S. Treasury Department ficaria inicialmente responsável pela gestão de qualquer retorno resultante dos novos atos, bem como pela arrecadação de receitas. Perdurou deste modo, até à criação do ICE, que o veio substituir no exercício das suas funções.
Anos passam e a principal função do U.S. Customs Service, em função de uma maior carga de responsabilidade, consequência da ocupação do antigo lugar reservado ao de U.S. Treasury Department, transforma-se no controlo de fronteiras nacionais, da imigração e das importações.
Na década de 80, a política migratória americana sofre
alterações significativas, essencialmente com a Lei da Reforma e Controle de
Imigração de 1986 (IRCA - Immigration Reform and Control Act), assinada
pelo presidente Ronald Reagan, caracterizada pela anistia concedida a
imigrantes indocumentados, bem como a expansão de vistos para trabalhadores
temporários, entre outras medidas encorajadoras.
Para além das modificações legislativas, outros fenómenos, tais como dezenas de
crises sociais, políticas e económicas, resultantes da abundância de conflitos
militares e revoluções, conduziram à consolidação da obsessão, convenientemente
criada pelos EUA, pelo "American Dream".
Atentando ao constatado, escusado será dizer que os
americanos nunca sofreram maior fluxo migratório do que o consequente; no
entanto, necessário é esclarecer que não se verificou a devida preparação. Como
resultado, dá-se um aperto, novamente, às leis recentemente modificadas.
Concluído o resumido processo da criação histórica do ICE, chegamos ao ano mais
marcante da história americana: 2001. Em função do ataque terrorista
mundialmente conhecido, é criado o departamento Homeland Security e, dentro
deste, o ICE.
Daí em diante, foram desenvolvidas missões cujo alvo se prende com o combate ao crime transnacional, nomeadamente, tráfico humano e trabalho forçado, juntamente com a fiscalização de drogas ilegais, controlo de cybercrime, bem como de potenciais predadores sexuais e infantis, e, essencialmente, detenção de imigrantes ilegais, ou seja, indocumentados.
Alterações pelo mandato de Donald Trump:
Na gestão do presidente Joe Biden, o controle migratório na fronteira sul constituiu o principal foco da estratégia de repressão aos indocumentados. O atual presidente garante, agora, as operações do ICE em cada canto do país, atingindo até os lugares mais sensíveis como igrejas, hospitais ou escolas, que, a cargo do anterior democrata, seriam intocáveis.
Mais concretamente, não só se permite, como se incentiva a detenção de imigrantes indocumentados pelos funcionários de baixo escalão, sem audiência diante de um juiz, caso eles não possam provar que lá estão a residir há pelo menos dois anos. Sob a administração de Biden, esta medida podia, de facto, igualmente ser aplicada, no entanto, somente, no máximo, a 160 km das fronteiras. Alicerçado a esta ação, surge o derrubar de quaisquer instruções para que agentes do ICE considerassem critérios que poderiam evitar estas deportações, como a ausência de antecedentes criminais e a presença de família nos EUA. Do mencionado entende-se que, atualmente, qualquer imigrante, mesmo com uma família constituída e sem quaisquer antecedentes criminais, pode ser deportado pelo facto de ser imigrante.
Apesar do referido, o democrata que antes tomava o poder, não se absteve de dar continuidade a estas medidas extremas do seu antecessor e, agora, substituto. Mais concretamente, os Estados Unidos tiveram um fluxo recorde de imigrantes sob a administração deste primeiro, onde cerca de 10 milhões de pessoas foram vetadas nas fronteiras e 1,5 milhão foram deportadas. Acresce a este número os 2,9 milhões de imigrantes e requerentes de asilo expulsos, da fronteira americana com o México, pelo Título 42, norma invocada por Trump no ano de 2020 contra a covid-19 e mantida por Biden até maio de 2023. Esta medida, inicialmente de saúde pública, tornou praticamente impossível pedir asilo aos Estados Unidos, o que, por consequência, agiliza uma deportação rápida de imigrantes que cruzam a fronteira irregularmente, sem sequer analisar eventuais solicitações.
Ora, já desde Biden que se evidencia o despertar do
encerramento da admissão de refugiados e asilados, no entanto, só se
concretizou, efetivamente, na 2ª tomada de posse de Trump.
Não deixa de ser relevante mencionar que tudo isto surge coadjuvado da
militarização da patrulha da fronteira com o México, o reinício da construção
do respetivo muro e a declaração de cartéis como organizações terroristas.
A ordem executiva assinada para pôr fim à cidadania por nascimento foi mais uma medida resultante do mandato de Donald Trump, responsável pelo grande espanto causado em vários juristas. Sucede que o presidente ordenou o desmantelamento do direito inscrito na 14ª Emenda da Constituição, que dá a qualquer pessoa nascida em solo americano a cidadania do país, o que, por sua vez, se traduz na imposição de negar a cidadania a crianças nascidas nesse mesmo solo, de indivíduos imigrantes, tendo estes vistos ou sendo indocumentados.
"Crimigração":
Desde a efetivação do seu mandato, contam-se duas semanas até o número de imigrantes deportados atingir os 11 mil, sendo factual que este só tem tendência a aumentar, atentando ao site oficial do ICE, no qual confessam que, nas múltiplas operações concluídas, nos mais diversos estados, desde o Colorado, ao Kentucky e West Texas, entre outros, detêm pelo menos 15 pessoas, e, na generalidade, 50 indivíduos por operação.
Na gênese destes movimentos consta o novo entendimento do conceito de "criminoso", pelo que a porta-voz da Casa Branca, Karoline Leavitt, quando confrontada com a quantidade absurda de detenções, declara: "É uma grande mudança cultural na nossa nação observar alguém que viola as nossas leis de imigração como criminoso. Mas é exatamente isso que eles são." É seguro retirar daqui o entendimento, consensual na nova administração, de que, mesmo sem cadastro criminal, os imigrantes são criminosos pelo simples fato de não terem documentação.
Atribui-se à jurista Juliet Stumpf a criação, no ano de 2006, do termo "crimigração", pelo que esta o entende como a intersecção entre a imigração e o direito penal, que, por sua vez, justifica esta tendência crescente de criminalização dos imigrantes. Mais especificamente, os antecedentes criminais constituíam o principal critério para a deportação, especialmente no que toca a moradores permanentes que viviam legalmente no país.
Estes antecedentes criminais, comprovadamente, não se destacavam em imigrantes, até porque a generalidade de práticas criminosas era atribuída aos nacionais, contudo, os estrangeiros continuavam a ser deportados, porquê?
Durante décadas, os Estados Unidos mantiveram leis "liberais" relativas à migração, até o ano de 1929, marcado pela criminalização do deslocamento através das fronteiras. Com a ajuda de pesquisas realizadas pelos interessados da época, destaca-se uma motivação racial por detrás destas modificações, comprovada a não autorização da migração por parte de um senador eugenista e "supremacista branco". O mesmo acreditava na pureza das raças e achava que, criminalizando a migração, iria estancar o fluxo de imigração mexicana para os EUA.
Destaca-se este alicerçar no direito penal pela atenção concedida aos antecedentes criminais, com força para declarar um imigrante como criminoso, mesmo que este já tivesse cumprido a sua pena, o que determinaria a proibição de entrar no país, se ali ainda não estivesse, ou promoveria a sua deportação, se nele já se encontrasse.
Da "transição" de 1929 para a atualidade, acresce o novo mecanismo de globalização do sentimento de medo pelos demais, como resultado da propagação da visão pública da imigração como algo relacionado ao crime, concretizada, essencialmente, pelos meios de comunicação.
Outras formas passíveis de garantir a segurança pública:
A exclusão, a deportação e a detenção são as mais empregues, historicamente, mas, sobretudo, atualmente. Apresentadas como "soluções civis", aparentam ser, afinal, castigos comparáveis a sanções penais. Excluir, deportar, deter, proibir a entrada nos Estados Unidos, mesmo com autorização, são ações administrativas, nas quais o indivíduo não foi castigado penalmente, muito menos foi condenado, no entanto, são ações muito semelhantes às que procedem no gerenciamento do sistema de justiça penal.
Ora, uma vez que se trata da interdição ou penalização daqueles sem documentos, ou cujos documentos não são válidos, quando detidos, ou deportados, a solução que melhor garante os direitos fundamentais seria a de disponibilizar um qualquer local de estadia temporária, até que a sua situação seja resolvida e, consequentemente, tomada a decisão se poderiam ficar ou deveriam partir.
Advém da administração de Joe Biden o financiamento de, pelo menos, 3 bilhões por ano, a empresas que gerem prisões particulares, apesar das reclamações generalizadas sobre as condições desumanas oferecidas por estas. O governo atual deu continuidade a este investimento, aliás, subiram o valor para os 8 bilhões por ano, e, agora, são estas que mantêm milhares de imigrantes em centros de detenção construídos segundo o modelo dessas prisões.
Direitos fundamentais dos imigrantes em situação de deportação: casos de desrespeito:
Desde 2024, dez pessoas morreram sob custódia do ICE, de acordo com uma revisão de comunicados de imprensa deste, nove delas em centros do setor privado. Em 2023, 90% das pessoas sob a sua custódia foram mantidas nestas instalações privadas. No mês de setembro, o escritório do inspetor-geral do Departamento de Segurança Interna divulgou um relatório acerca das 17 inspeções pontuais, não anunciadas, nestas instalações espalhadas por todo o país, onde se constata a escassez de cuidados médicos, violações dos padrões de saneamento, entre outras condições desumanas.
Em alternativa, a criação de centros humanitários de acolhimento, ao invés de prisões privadas, compostos por centros geridos por entidades governamentais ou organizações humanitárias, cujo foco consiste no suporte jurídico, no acesso a um local de residência temporária, bem como acesso a cuidados médicos, permitiria alcançar os mesmos objetivos, de modo mais empático e humano. Poder-se-ia ainda ponderar o aguardar das decisões judiciais em liberdade, com monitorização e respetivo acompanhamento jurídico, bem como o uso de fianças acessíveis e apresentações periódicas obrigatórias em função de detenções prolongadas.
Ao ouvir acerca desta deportação em massa, de todos aqueles forçados a deixar para trás uma vida inteira e regressar para o sítio no qual lutaram tão intensamente para sair, tendemos a esquecer a família que fica, ou que com eles vai. Os milhares de crianças que permanecem nos Estados Unidos, agora ao serviço de agências sociais, ou as restantes, que regressam com os pais ao país de origem e encontram-se agora perdidas numa nova realidade que lhes foi imposta tão abruptamente.
Enquanto estas dezenas de pessoas saem, o medo e a ansiedade permanecem, naqueles que ficam, naqueles que sabem que vão ser os próximos ou naqueles que temem vir a ser os próximos.
Como infeliz exemplo, destaca-se Jocelynn Rojo Carranza, uma menina de apenas 11 anos, que tirou a própria vida por receio da expulsão dos seus pais e, respetivamente, do seu abandono. Oriunda de uma família hispânica, morava com a mãe, Marbella Carranza, na cidade de Gainesville, no Texas, onde sofria ameaças diárias pelos seus colegas na escola, essencialmente, no sentido de denunciar a sua família ao Serviço de Imigração que, a esta altura, já bem conhecemos: ICE.
Conclusão:
A história da política migratória dos Estados Unidos retrata uma significativa evolução, caracterizada por mudanças impulsionadas pelos respetivos contextos históricos, como o 11 de setembro e a administração a cargo de diferentes presidentes.
O surgimento deste serviço em 2003, e as subsequentes modificações nas práticas de imigração e deportação, são o reflexo de uma crescente criminalização dos imigrantes, frequentemente sem consideração pelas suas circunstâncias individuais. Esta "crimigração" originou o aumento das detenções e deportações, muitas vezes em condições que não respeitam na íntegra os direitos fundamentais individuais, particularmente as que se procedem em centros privados.
O governo atual tem mantido políticas rigorosas, que, por sua vez, evidenciam a necessidade de um sistema mais empático e respeitador dos direitos fundamentais do ser humano. As referidas práticas de exclusão, detenção e deportação não devem ser tratadas como castigos penais, mas como processos administrativos ao respeito da dignidade humana. Além disso, a sobrecarga do sistema de detenção e os relatos de condições precárias exigem alternativas mais considerativas, como centros de acolhimento geridos por entidades governamentais ou organizações humanitárias.
A reavaliação das políticas migratórias americanas é crucial para a prossecução da segurança pública, pois, garantindo o acesso a recursos jurídicos adequados, cuidados médicos e condições de detenção mais humanas, tudo se procede de um modo mais pacífico. O desrespeito pelos direitos fundamentais dos imigrantes, incluindo aqueles em processo de deportação, constitui o principal obstáculo à construção de uma política migratória mais justa e digna, o que, por sua vez, determina a impossibilidade de alcançar a paz nacional.
Madalena Nascimento, Analista e Colaboradora da Diretoria Acadêmica.